A entrega das ossadas das vítimas do 27 de Maio aos familiares foi mais uma entronização de mentiras, a somar a tantas outras já montadas pelo regime do MPLA. Aquilo pelo qual muitos corações ansiavam, a transformação do sonho em realidade pela virtuosa entrega das ossadas das vítimas do 27 de Maio aos familiares, virou, como se previa, um régio espectáculo de estupidez e escárnio. Nem a solenidade que o ministro Francisco Queiroz emprestou ao espectáculo o salvou do ridículo a que se expôs. Mais uma entronização de mentiras, a somar a tantas outras já montadas pelo regime do MPLA.
Por Carlos Pacheco
Historiador angolano (*)
Se este “grande feito” celebrado pelo prestante mordomo da Justiça convenceu alguém com a sua absurda estória das ossadas de Nito Alves, José Van-Dúnem, Bakaloff, Sianouk, Monstro Imortal e outros, só os tolos e parasitas do regime acreditaram. No caso destes últimos, acreditaram por oportunismo. Eles enxameiam a Corte de Luanda e saltam como o sapo no conto de Guimarães Rosa, o escritor brasileiro[1], apenas preocupados consigo próprios, com o seu sucesso pessoal. Um gesto egolátrico comum no reino do MPLA, onde nenhum dos respectivos espécimes é capaz de saltar de maneira diferente. Todos imitam o sapo-rei, reproduzem as suas acções na expectativa de serem recompensados pela sua dependência e submissão ao soberano e à sua palavra.
Por certo estes parasitas glorificarão o nome de Queiroz pela sua gesta em prol da “descoberta” das ossadas e dirão que com este sucesso o sol brilha intensamente nos céus de Angola. Que o regime do general João Lourenço é justo e que o ministro não mediu sacrifícios no seu trabalho para encher de alegria e paz o coração das pessoas que perderam parentes na “lamentável confusão” de 1977, conforme a etiqueta por eles usada para se referirem às monstruosidades do Estado naquela época e fingirem desta forma desconhecer a história.
Há muito que Queiroz tem dado provas de ser um exímio criador de sonhos. Não de sonhos positivos que sirvam de método para conhecer o mundo na sua dimensão moral e ética, como diria um poeta. Mas antes um criador de maus sonhos que usa para fantasiar a realidade e promover falsas montagens cénicas com toda a sorte de ingredientes perversos que lhe estão associados. A arte de enganar o povo em Angola com estéticas discursivas confusas e opacas, como o faz o ministro, acontece com bastante frequência ante o olhar aparvalhado da colectividade nacional. O mesmo se pode dizer da banalização com que se desculpa a desfaçatez e a personalidade malsã dos governantes.
Dizia um especialista latino-americano, cujo nome não me vem à memória, que “toda a sociedade pós-conflito que não viveu um processo de verdade, justiça e reparação aloja no seu seio um gigante enterrado”. Angola também tem este gigante injustamente esquecido debaixo dos seus pés na figura de milhares de fantasmas despedaçados na sua carne, no seu sangue, nos seus ossos, na sua pele e na sua alma pela fúria de matilhas de facínoras que agiram sob a coleira dos seus amos no MPLA e no Governo.
Acerca deste gigante, a Comissão de Reconciliação presidida por Queiroz tem-se mostrado desde o início um beco de pesadelos para as famílias dos desaparecidos no 27 de Maio, e igualmente para os sobreviventes, pelas declarações dúbias, e até mesmo falsas e ignóbeis, que ali se produzem relativamente aos crimes contra a humanidade consumados em 1977. A biografia desta Comissão é um extenso repertório de ofensas à memória de quantos foram humilhados e violentados pelo regime sanguinário de Neto num turbilhão de sequestros, prisões injustas, torturas, assassinatos, estupros, massacres, desumanização, extermínio e repressão política. Algo só comparável a um monstro mitológico, descomunal, de muitas cabeças, tipo Hidra de Lerna, com o seu hálito pestilento de terrorismo que arrasou o país de ponta a ponta. As espirais de sofrimento resultantes desse banquete de horrores jamais se aplacaram até aos dias de hoje.
Já estampei neste mesmo jornal uma enxurrada de textos a denunciar as máscaras com que Queiroz cinge o seu rosto ao comportar-se igual a Mefisto, a personagem emblemática do escritor alemão Klaus Mann (1906-1949) que trocou a sua militância antifascista pela alucinação da glória fácil. Traiu a sua própria consciência e hipotecou-se ao regime nazi[2]. O ministro, como bom actor que é aos olhos dos seus protectores partidários, aceita cumprir ordens imorais. E, nesta qualidade, desempenha na perfeição, como obediente sacerdote, o papel de oficiante dos grandes ritos de infâmia e mentira orquestrados pelo MPLA. Ritos que espelham as baforadas malignas do dragão (o mesmo do falso pedido de perdão) com a finalidade de fazer esbater o trauma dos crimes atrás enunciados, garantir a impunidade dos torturadores e assassinos e promover o esquecimento desse passado.
Cada declaração do ministro surpreende sempre pela originalidade, nenhuma é límpida nas suas intenções. Todas vêm embalsamadas por monturos de lama. Todas as vezes que apregoa as suas falsas doutrinas sobre a reconciliação, Queiroz deixa pelo caminho uma saliva viscosa de serpente. Falta a este áulico da Justiça a necessária percepção para entender “a infinita complexidade das coisas políticas e sociais”. Nunca imaginei, desde a primeira hora que se formou a famigerada Comissão de Reconciliação, que algum dia me entraria por baixo da porta um sinal de esperança sobre a redenção do regime do MPLA, como quem é agraciado por uma aragem de bons augúrios. Há bastante tempo que a bússola da realidade me tem advertido para a impossibilidade de tal esperança se concretizar.
Comungo da mesma reserva do jornalista e escritor brasileiro Aparício Fernando de Torelly (mais conhecido por barão de Itararé, 1895-1971), que destilava o seu desencanto quando se deparava com maroteiras estilo Queiroz: “Donde não se espera nada, é donde não vem mesmo nada”. Com efeito, nada de bom se pode esperar do desconcertado teatro político nacional angolano do qual o ministro faz parte. Nem a crença dos antigos que diziam que o “rei que fica pagará as dívidas do rei que morre” me convence.
Não vejo estatura política no general João Lourenço para reparar a dívida moral das acções atrozes praticadas por Neto. Não se vê nele desconforto e tão-pouco horror ante o sangue dos que foram mortos e clamam por justiça. O pedido de desculpas por ele expresso não passou de um falso diamante com que tentou enganar as opiniões públicas (ler neste jornal um outro texto meu, “O perdão e o festim dos lobos”, edição de 21 de Novembro de 2021).
O vezo no MPLA para manipular e usar de artimanhas é tão velho quanto inalterável, reflexo da arrogância e do anti-democratismo que caracteriza esta organização. Os ditadores também pedem perdão. Exemplo maior talvez seja o antigo homem de mão-de-ferro da República do Iémen, Ali Abdalah Saleh, que “pediu perdão” pelos erros cometidos durante 32 anos de governação (leia-se abusos). Contudo, em vez de renunciar apesar dos fortes protestos, continuou à cabeça do partido do Congresso Geral do Povo na senda dos mesmos ultrajes. Acabou por fugir do país. Outros ditadores o igualaram nos mesmos gestos.
Este tem sido o comportamento dos responsáveis do MPLA desde os tempos da luta libertadora anti-colonial. Os punhais da mentira, da intimidação, da traição e da violência sempre estiveram apontados ao coração dos militantes e do povo em geral numa perpétua ciranda de impunidade. Queiroz é produto desta engrenagem perversa. A última declaração por ele produzida acerca das valas clandestinas e das ossadas das vítimas do 27 de Maio é, definitivamente, uma construção ardilosa que fala por si. Ultrapassa todos os marcos de decência.
Ao anunciar o resgate das cinzas de Nito Alves, o ministro atingiu o zénite da perfídia. De onde se resgataram as ossadas?, eis a primeira questão crucial a discutir. Tê-las-ão retirado das entranhas da terra ou foram buscá-las às profundezas do oceano? Tanto quanto se sabe, pois eu já o sei há umas boas dezenas de anos, o corpo daquele antigo dirigente foi precipitado no fundo das águas do mar (do alto de um helicóptero ou de um avião) nos tristemente célebres voos da morte, tão comuns naqueles tempos de barbárie. Facto do qual se pode extrair a conclusão, objectiva e certa, de que o cadáver de Nito Alves nunca esteve ali onde dizem tê-lo exumado.
No tocante àquelas cavalgadas de loucura extremista (os voos da morte), efectuadas ao abrigo do Estado e envolvendo aparatos das Forças Armadas, o regime do MPLA recusa-se a falar, fazendo destes crimes de lesa-humanidade mais um segredo. Um segredo com o qual emparelham muitos outros segredos que a pesada máquina repressora do regime do general João Lourenço porfia enterrar em terra, no mar, e sabe-se lá mais aonde. Sobretudo segredos relacionados com a identidade dos autores dos massacres. Quanto mais depressa estes rastos de crueldade e atrocidades desaparecerem, melhor.
Entretanto, o labirinto de ardis e maquiavelismos no ministro não se detém apenas na má-fé de vender a falsa versão do cadáver de Nito Alves e de mais uns quantos. Ele bem se obstina em transformar a expectativa das pessoas para as desviar do movimento das suas próprias mentes e subordiná-las às narrativas do poder político. Até à data persiste uma nuvem espessa de obscuridades com respeito aos locais do território nacional onde a ditadura de Neto ocultou as ossadas das vítimas das chacinas. O que fizeram com Jacob Caetano (vulgo “Monstro Imortal”), antigo chefe do Estado-Maior das FAPLA, e com milhares de outros desaparecidos? O que fizeram com homens, mulheres, crianças e adolescentes sem nenhum vínculo de militância com o MPLA, quando muito ligados a seitas religiosas, e se teima em não divulgar os seus nomes e filiação mantendo-os dissipados, sem identificação e sem reconhecimento?
Eis a grande questão à qual o regime de Luanda se nega a dar respostas. É escusada a pantomima posta em cena de que as ossadas de vários dirigentes foram localizadas quase intactas num mesmo local. Só em romances de ficção é possível juntar corpos de pessoas numa mesma vala, sabendo-se o destino a que foram condenadas. Mataram-se os melhores talentos civis e militares de uma geração, executados em locais e datas diferentes, a maior parte sem direito a pronunciar-se. Mortos simplesmente ao sabor de um fanatismo idolátrico pela figura de Neto e por uma sanha anti-intelectualista, típica do MPLA. Por isso, estamos diante de mais um jogo de sombras. A terra bebeu muito sangue, é verdade, envelheceu, como diria um cronista do século XIX, porém “o sangue de uns com o sangue de outros não se unem”[3].
As trapalhadas e as mistificações são tantas que nem vale a pena discutir a questão da constituição de equipas de especialistas em antropologia forense que deveriam tomar o encargo de identificar as ossadas. A seriedade e o rigor de procedimentos lamentavelmente não estão presentes nos programas de acção da Comissão. A fala do ministro e as provas por ele apresentadas, sem nenhum resquício de credibilidade, são suficientemente esclarecedoras para se perceber quem andou a escavar a terra. Certamente agentes da estrutura militar sem nenhum compromisso com a ciência e a memória, e menos ainda com a verdade, a justiça e a reparação. No mundo das fardas não existe outro primado senão o da força e, tanto quanto se pode observar, os seus representantes parecem antes de tudo preocupados por apagar da História vestígios que os incriminem pelo seu papel de co-artífices do inferno de violências no 27 de Maio.
As famílias dos desaparecidos sequer foram consultadas, como de resto se calculava. As investigações são controladas pelos detentores das armas, principais responsáveis pela extensa cadeia de repressão no período de terrorismo de Estado de Neto, o que invalida em absoluto os trabalhos de “análise” que estão a decorrer. O princípio consagrado internacionalmente na carta de defesa dos direitos humanos preceitua que as “investigações sobre graves violações sejam conduzidas por perícias independentes”. Nunca em exclusivo por órgãos detentores dos instrumentos de violência estatal.
Afinal, que pensar de tudo isto? A estupidez e a mentira no regime do MPLA merecem ser coroadas e divinizadas em panteão próprio. A Comissão de Reconciliação nada significa para a sociedade civil, salvo ser desde o início da sua existência um sério insulto, uma bofetada no rosto de todos os angolanos que não se revêem nos conluios, nas dissimulações e obscenidades de um Governo que não cumpre obrigações para com a democracia e a justiça e que já deixou evidenciado não estar interessado em devassar os abismos do mal representados pela ditadura insepulta de Neto.
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[1] Guimarães Rosa. “A hora e Vez de Augusto Matraga”. In: Sagarana [prefácio de Paulo Rónai], Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2015, p. 345.
[2] Klaus Mann. Mefisto: Romance de Uma Carreira [tradução e prefácio de Erlon José Paschoal], São Paulo, Estação Liberdade, 2000.
[3] “Ódio Velho não Cansa”, Parte III, O Panorama, Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis [Lisboa], n.° 34, vol. 1, Outubro 16, 1847, p. 266.
(*) Artigo publicado no jornal português Público em 11.04.2022
Foto: Folha 8